19 de janeiro de 2010

A Emergência das “Classes Perigosas”: Medicalização e Criminalização da Pobreza no Contexto da Transição do Império à Primeira República

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Julho/2008

Com a chegada da corte portuguesa nos trópicos a capital do Império foi transferida para o Rio de Janeiro, lugar esse marcado por uma vislumbrante paisagem geográfica que incitava – e ainda incita – o imaginário coletivo da “cidade maravilhosa”; transferência de capital não significava somente uma mera mudança territorial, mas também de novas condições sociais por ser agora centro cultural, político e econômico do território brasileiro. “É no Rio de Janeiro que se desenrola o ‘paradoxo fundador’ da história nacional brasileira” (ALENCASTRO, p.10).
O século XIX foi um período que marcou profundamente o que mais tarde tornar-se-ia o Brasil. Durante o Império passamos por crises econômicas agravadas, em maior ou menor grau, pelas campanhas de Independência e as guerras externas – principalmente a Guerra do Paraguai – e seus influxos afetaram a produção de açúcar, tabaco, algodão e couro propiciando um endividamento com as potências industriais – sobretudo a Inglaterra – e o país continuou a comprar produtos manufaturados sem equilibrar a balança comercial com nossas matérias-primas.
No século XIX vemos emergir a “Jovem República” que se “liberta” das vísceras do “arcaico” imperial e da escravidão, os republicanos têm pressa em afirmar o Brasil como “moderno” e integrá-lo no rol das “nações modernas”, esta pretensão em ser “moderno” irá marcar profundamente os eventos e as experiências de e em nosso país.
A distinção social, cultural e econômica é um elemento fundamental neste contexto de “modernização” do Brasil, o governo agora se instala em sedes mais luxuosas e as camadas mais abastadas da sociedade urbana perambulam pelas áreas centrais desfilando com as últimas modas de Londres e Paris esbanjando elegância e soberba – mas também com muito incômodo pelo simples fato destas roupas não ser adaptadas aos trópicos – pela famosa Rua do Ouvidor. Novos hábitos penetram no cotidiano das elites locais e, a ânsia e compulsão de se distinguir na hierarquia social e da experiência do passado imperial com roupas da moda, jóias, maquiagens, perfumes e o emblemático piano, as mudanças também ocorreram no vernáculo e na negação do “outro”, mais precisamente o português que representaria o império, para ficarmos em alguns exemplos (1).
A crença no “progresso” correlacionada aos avanços médicos e científicos impulsionou a nova capital da república a travar duros combates às “doenças” de todos os tipos, as “enfermidades” – podemos destacar a criminalização, patologização e marginalização do pobre – seriam os principais desafios para sua consolidação e seu ingresso aos “novos tempos”, a Belle Époque. O novo regime ainda não teve tempo para se “modernizar” (2), ainda é constatável as ruas estreitas, vielas sujas, becos onde acumulam lixos e propiciam a ladinagem; não há uma racionalização urbanística do espaço, ou seja, não há paisagismos nas praças públicas, pavimentos de paralelepípedos ou sem pavimentação, calçadas diminutas e esburacadas; o tráfego da cidade constitui-se de charretes, carroças puxadas por cavalos, e com avançar dos anos surgiriam os bondes circulando pelas ruas em uma grande malha férrea urbana; os grandes sobrados vão se transformar em bares, lojas, oficinas, cortiços e cabarés, e a maioria deles (quase todas as casas e estabelecimentos) não tinham condições sanitárias básicas e janelas nos quartos para ventilação, o que será “prato cheio” para os higienistas.
A população que vivia nas ruas, em sua maioria de negros e mestiços, desempenhava inúmeros trabalhos, poderia ser: costureiro, fabricante de vassouras, vendedor ambulante, carregador de pianos, etc.; os principais trabalhos das mulheres eram doceira, sorveteira, doméstica que levavam grandes quantidades de roupas em bacias em busca de água no chafariz ou rios próximos da casa do patrão – locais estes de intensa sociabilidade – e, não podemos nos esquecer da prostituta. Outros grupos enquadrados na época como “indesejáveis” eram os imigrantes pobres, os capoeiras, os taxados de “desocupados” e andarilhos que perambulavam pelas ruas em busca de qualquer serviço que lhes renda alguns “trocados” (Idem, Ibidem). Todas estas personagens de alguma forma necessitavam habitar, alimentar e beber um gole para animar-se e esquecer dos próprios infortúnios, os bares, os botequins e os quiosques serão âmbitos fundamentais para encontro desses indivíduos, locais onde possam se sociabilizar e se (re)territorializar.
Entretanto, estes lugares ofereciam condições de “higiene” mínima, os insetos são constantes infestando o local, os restos de alimentos atraem mendigos, cachorros e ratos e, no olhar do higienista e de outros das camadas mais abastadas da sociedade, tais locais “enfeiam” e “emporcalham” a cidade, seriam focos de produção e disseminação de doenças juntamente com os cortiços, seriam todos redutos das “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996) – são estes lugares que serão criminalizados e patologizados e seus moradores e freqüentadores se constituíram como problemas emergentes (3) –, “indesejáveis” a serem expulsos, presos, medicalizados ou eliminados.
Em meados do século XIX e início do século XX, a questão da salubridade dos espaços urbanos se tornara emergente para as diversas autoridades públicas como uma preocupação e dever previdenciário de erradicação das doenças epidêmicas nos territórios citadinos. Neste contexto, as reformas urbanas sofreram intervenções de ordem profiláticas (profilaxia territorial e populacional – cabe destacar a introdução de projetos eugênicos e as estigmatizações biológico-raciais), políticas higienistas e sanitárias rígidas nas quais passaram a serem exercidas como medidas preventivas contra os ambientes e sujeitos insalubres, focos de epidemias e sobre as “emanações miasmáticas” (4).
Segundo Sidney Chalhoub (1996), a “ideologia da higienização” das cidades sustenta os dispositivos de exclusão e segregação sócio-espacial através de justificativas de invasão e eliminação das habitações coletivas e, grande parte das moradias das camadas pobres estava sujeitas a extinção, cuja visão do poder público é tida como “classes perigosas” e “infecciosas” devendo passar pelos mecanismos de suspeição e inspeção generalizada de controle social dos trabalhadores, repressão à ociosidade, não somente a suspeição, mas também a criminalização e patologização das classes pobres.
Não é uma simples eventualidade a construção ideológica de “classes perigosas” análoga à noção de “classes pobres”, portanto, não se restringe somente a um problema de desordem social que estavam por trás desta noção, mas principalmente o perigo do “contágio”, a pobreza como doença ontológica, moral, social e epidemiológica de vícios e doenças passada de geração a geração através da exposição dos filhos aos “males” dos pais advindos destas “classes”. Um dos principais contágios morais combatidos era a ociosidade, Sidney Chalhoub mostrá-nos duas etapas desta estratégia, “mais imediatamente cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adultos o mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores” (Ibidem, p. 29). Por outro lado, um dos principais combates profiláticos ao perigo de contágio infeccioso era contra a habitação das “classes pobres”, segundo o diagnóstico dos médicos higienistas, era por se tratar de uma habitação coletiva de pobres e disseminador de epidemias que afligiria toda sociedade.
Contudo, para os higienistas a habitação era a causa etiológica do problema em três níveis: primeiro, por ser a moradia dessas “classes” o local de grande concentração de pobres, como o cortiço cabeça de porco o qual moravam cerca de 4.000 moradores (5); segundo os higienistas, estes lugares eram os principais focos de propagação de doenças infecciosas, ocasionados pela falta de “higiene” e pela própria “natureza” – principalmente dos negros – doentia e patológica; terceiro, a proliferação de “vícios” e “más condutas” (a inexistência de virtudes) de dentro das habitações para os locais públicos. As “classes perigosas” constituíam um “perigo social” em triplo sentido, portanto, “justificativas” suficientes para se tornarem alvo de perseguição e “suspeição generalizada”.
A adesão a noção de “classes perigosas” surge na história do Brasil a partir da desagregação da sociedade tradicional, bem como na paulatina desarticulação do trabalho escravo na sociedade brasileira e no processo de republicanização, portanto, sua recepção pode ser compreendida no ponto do surgimento de preocupações subseqüentes à situação de “libertos”, em que se encontram os escravos pós-abolição por parte das autoridades públicas, sobretudo, por sua presença e circulação nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro; medos que se articulam a “perda” do papel social dos escravos, ou seja, seu eminente estado de anomia frente à recomposição da ordem, suscitada pela nova sociedade que aos poucos se delineava, propiciando assim, a emergência da “suspeição generalizada”, outrossim, a atualização de novas relações de poder, as quais, por sua vez, obedeciam às técnicas visuais e de visibilidade inéditas, que assistiria à falência do estatuto de mercadoria prevista ao negro na sociedade colonial e imperial. Deste modo, a ensejar as novas cifras das “periculosidades” – ou em outro termo criminológico da época, as “perigosidades” – através de traços físicos, características morfológicas e fenotípicas, conferindo autêntica tônica na visibilidade dos corpos sob os quais se podia efetivar a “natureza” potencial e virtualmente de futuros criminosos.

Notas

(1) Para maiores detalhes acerca das disparidades lingüísticas e das mudanças de hábitos e comportamentos advindas da introdução de bens de consumo no Brasil leiam: Luís Felipe de Alencastro “Vida privada e ordem privada no Império” In: História da Vida no Brasil Vol. 2, São Paulo, Cia das Letras.
(2) Segundo Raymundo Faoro a “modernidade” se diferencia de “modernização”, pois a “modernidade” seria um processo que envolve toda a sociedade transformando suas camadas e modificaria ou extinguiria os papeis sociais hierarquizados; a “modernização”, ao contrário, não se dá involuntariamente no processo histórico, seria um processo forjado por um determinado grupo social privilegiando-se ou privilegiando as camadas mais abastadas, “(...) procura moldar, sobre o país, pela ideologia ou pela coação, uma certa política de mudança. Traduz um esquema político para uma ação, fundamentalmente política” (FAORO, 1992, p-8).
(3) Para lidar e tentar eliminar de vez com estes problemas, foi preciso uma força conjunta que se chamou de “tripla ditadura”. “As autoridades conceberam um plano em três dimensões para enfrentar todos estes problemas. Executar simultaneamente a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma urbana. Um time de técnicos foi então nomeado pelo presidente Rodrigues Alves: o engenheiro Lauro Mülher para a reforma do porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz para o saneamento e o engenheiro urbanista Pereira Passos, que havia acompanhado a reforma urbana de Paris sob o barão de Haussmann, para reurbanização” (SEVCENKO, 2008, pp. 22-3).
(4) Vale salientar as divergências teóricas em torno das enfermidades, para citarmos dois exemplos no bojo do higienismo, as discrepâncias que ocorriam entre os contagionistas e os anticontagionistas, estes últimos chamados de infeccionistas. A primazia do segundo grupo sobre o primeiro na segunda metade do século XIX se deu não somente pelo caráter de cientificidade, mas também por corresponder à lógica progressista comercial e industrial, pois o princípio de quarentena dos contagionistas seriam barreiras burocráticas para o desenvolvimento econômico, “tornaram-se suspeito aos apologistas da ideologia liberal interessados estes na superação dos entraves ao livre desenvolvimento das relações de comércio” (CHALHOUB, 2006, p.170). Os infeccinistas por sua vez, afirmavam que as doenças eram conseqüências de inúmeros fatores que agem conjuntamente sobre a vida influenciando diretamente na evolução da infecção e, os diferentes modos de vidas (desde hábitos de higiene a habitação) demonstravam vulnerabilidade e a propensão das camadas pobres a se adoecer, contudo, teriam que combater as “emanações miasmáticas” (Ibidem, p.64) modificando radicalmente as condições habitacionais e de vida desta população, sendo assim, atendia diretamente aos objetivos das elites locais concernentes aos seus ideais de “progresso”.
(5) Conforme Sidney Chalhoub, “(...) Há controvérsia quanto ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; (...) a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época, porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local” (Ibidem, p.15).

Bibliografia

ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Introdução: modelos da história e da historiografia imperial”; “Vida privada e ordem privada no Império” In: _________ (org.) História da vida privada Vol. 2, São Paulo, Cia das Letras.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estud. av. [online]. 1992, v. 6, n. 14, pp. 7-22. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/ v6n14/v6n14a02.pdf Acessado em: 29 de junho de 2008.
SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada Vol. 3, São Paulo, Cia das Letras, 2008.

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