19 de janeiro de 2010

República Velha e Ambiguidade: Inclusão-excludente das Camadas Populares e Suas Tradições do Centro Urbano Carioca

Andrews Correia de Amorim
Leandro Fernandes Sampaio Santos

Setembro/2008

Para pensarmos o Brasil da República Velha, partiremos de um contexto mais amplo a partir de Nicolau Sevcenko (2008) que faz uma análise sobre a formação histórica brasileira no interior das transformações ocorridas durante o expansionismo da economia política e do neocolonialismo em contexto globalizado da industrialização que irrompe com maior intensidade a partir da revolução científico-tecnológica no decorrer da segunda metade do século XIX.
Essa dinâmica da expansão global do mercado capitalista fez com que as novas tecnologias produzidas cientificamente modificassem em ritmo acelerado o cotidiano das pessoas e seus costumes penetrando na subjetividade, transformando o modo como concebem a sua própria intimidade e experiências coletivas.
O Rio de janeiro, a então capital da Primeira República, passou por grandes transformações sociais, culturais, políticas e econômicas antes mesmo da Proclamação da República nos últimos suspiros do Império com a abolição da escravidão. Estes dois acontecimentos paradigmáticos (poderíamos destacar inúmeros outros como, por exemplo, o episódio da Guerra de Canudos, mas nos deteremos nestes dois eventos para abordarmos um quadro geral) ocasionaram profundos impactos de fundamental importância para pensarmos a República Velha (CARVALHO, 1987).
Essas transformações se deram de modo significativo com a reforma e “regeneração” – eliminar os males e os elementos “degenerativos” que atrapalhavam o “progresso” – impostas pelas novas sanções, normas e concepções urbanísticas racionalizante e tecnocrática. A presença de indivíduos das camadas populares nestes locais remodelados e higienizados (1) era vista com repugnação e sofriam perseguições policiais induzindo-os ao afastamento voluntário e gradativo, quando não expulsos imediatamente do centro da cidade, entretanto, isto não ocorria de forma absoluta, muitos desviantes conseguiam escapar da vigilância e permanecer, mesmo que precária e provisoriamente, em locais proibidos aos pobres. Portanto, é evidente nestas práticas de vigilância seletiva a ideia de que o centro era exclusivo para certos grupos sociais elitistas e excludentes as camadas pobres da sociedade, o centro com suas novas arquiteturas e equipamentos urbanos modernos eram desfrutados somente por estes mesmos grupos sociais e, o restante da população deveriam se contentar e se restringir às áreas suburbanas e periféricas (2).
Esta lógica exclusivista e excludente das áreas centrais da República Velha não foi aceita facilmente e passivamente como pretendiam os setores mais abastados da capital. Estes espaços urbanos eram territorialidades marcadas tradicionalmente pela cultura popular e pela circulação de indivíduos a ela pertencente, isto era evidenciado principalmente no período de carnaval o qual incorporava diversas personagens desta manifestação sociocultural, tal manifestação era ambígua, pois era um mecanismo de exclusão pela inclusão aparente (ou uma inclusão excludente) e, aos poucos, foi utilizado como estratégia no esforço conjunto das elites e do governo oligárquico republicano em conter e deter aqueles que pela “suspeição generalizada” (3) faziam parte das “classes perigosas”. Nesta nova lógica de modernização e exclusão “as classes populares vislumbravam na modernidade algumas brechas que lhes oferecessem, alguma oportunidade de ascensão social” (SEVCENKO, 2008).
A rejeição dos negros, ex-escravos e libertos, bem como a maioria dos homens e mulheres populares no ingresso da convencionada República Velha advêm, sobretudo, de fenômenos inéditos e mais amplos da sociedade brasileira, em nosso caso específico ocorridos no Rio de janeiro, a partir da segunda metade do século XIX, aos quais passariam paulatinamente caracterizar os jogos das relações sociais e de poder no Brasil, cuja expressão maior vislumbra-se especialmente no perverso nexo estabelecido entre república e modernidade, concebido mediante a emergência de novas ópticas concernentes às percepções dos espaços urbanos e da gestão da esfera pública. Implicações entre vistas nos rumos que a política pública se orientaria desde então.
Tais problemas foram elucidados por Nicolau Sevcenko ao usar a expressão “regeneração” (4), experiências intensificadas na tacanha regulamentação dos costumes e das condutas, potencializadas pelo epíteto aburguesador das sociabilidades e subjetividades, que a título de demonstração, o carnaval é emblemático, o esvaecimento do significado popular, múltiplo e coletivo da festa para adesão do modelo comedido de Veneza (Idem, pp. 26-27).
O samba nas primeiras décadas do século XX seria marcado por ambivalências na sensibilidade estética oscilando entre o repúdio e o enaltecimento, entre a aceitação e a opressão; aceitação da melodia e harmonia musical (5) e opressão da vagabundagem e da desocupação permanente associados ao samba e outras expressões populares. Estas ambivalências estão relacionadas às grandes problemáticas dos intelectuais que ocupavam cargos governamentais da época perante os desafios para constituição paradoxal do “corpo político” da Primeira República.
Podemos observar por um lado os critérios darwinistas sociais e positivistas que consideravam uma “pedra no caminho” à plena aceitação do negro na esfera pública que durante todo o processo de republicanização do Brasil ficaram à margem, por outro lado, as tradições culturais populares, principalmente negras (6) associadas à malandragem (que posteriormente se tornaria no tema predileto dos cantores populares), discriminadas e taxadas como “primitivas” e sinal de “atraso” na tão almejada “modernização” do Brasil e eram, ao mesmo passo, considerados parte constituinte da expressão da cultura nacional, como o caso do samba, o qual foi apropriado e traduziu-se em uma tentativa de invenção mitêmica da simbologia popular por parte das elites que buscavam subsídios na cultura popular para dar legitimidade política ao então “novo” regime republicano (SEVCENKO, 2008, p.21; CARVALHO, 1987, p.41).

Notas

(1) Umas das principais mudanças ocorridas nos primórdios da República foram concernentes a demografia “em termos de número de habitantes, de composição étnica, de estrutura ocupacional. A abolição lançou o restante da mão-de-obra escrava no mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. Além disso, provocou um êxodo para a cidade proveniente da região cafeeira do estado do Rio e um aumento na imigração estrangeira, especialmente de portugueses” (CARVALHO, 1987, p. 16).
(2) A distinção que se dava dicotomicamente entre as elites locais e as camadas pobres se expressava no campo visual pelas vestimentas seguido dos hábitos e comportamentos sob o signo do estigma social. “Como corolário, as pessoas que não pudessem se trajar decentemente, o que implicava, para os homens, calçados, meias, calças, camisa, colarinho, casaco e chapéus, tinham seu acesso proibido ao centro da cidade” (SEVCENKO, 2008, p.26).
(3) Termo este cunhado por Sidney Chalhoub (1996).
(4) “A atmosfera da ‘regeneração’ era o correspondente brasileiro desse surto amplo de entusiasmo capitalista e da sensação entre as elites de que o país havia se posto em harmonia com as forças inexoráveis da civilização e do progresso” (SEVCENKO, 2008, p. 34).
(5) “A produção racional da música para o mercado teria que se acomodar ao roubo do direito autoral, ao plágio, à compra de música de compositores desconhecidos por parte de cantores famosos, ao suborno das estações de divulgação, e assim por diante” (VASCONCELLOS, 1984, p. 508).
(6) “Quando o escravo conquista o direito (e a necessidade) de vender sua força de trabalho, estamos diante de um momento decisivo: a voz do negro adquire uma posição que modifica profundamente a composição cultural brasileira. A musicalidade circunscrita ao latifúndio – em si, expressão acabada de documento de barbárie –, ao se libertar com a Abolição, invade a cidade: um grito que ecoa pela Nação, animando a festa (carnaval), embriagando a atmosfera urbana com uma música popular envolvente, de grande ressonâncias nas nervuras da sociedade” (Ibidem, p. 504).

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Cia das Letras, 1987.
SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”. In: ________(org.). História da vida privada Vol. 3, São Paulo, Cia das Letras, 2008.
VASCONCELLOS, Gilberto. “A malandragem e a formação da música popular brasileira” In: FAUSTO, Boris. História geral da civilização brasileira III. O Brasil republicano Vol. 4: Economia e cultura (1930-1964). Difel, 1984.

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